4º Trimestre de 2020
ESBOÇO DA LIÇÃO
INTRODUÇÃO
I – O LIVRO DE JÓ E A NATUREZA DE SATANÁS
II – O LIVRO DE JÓ E AS OBRAS DE SATANÁS
III – O LIVRO DE JÓ E O OCASO DE SATANÁS
CONCLUSÃO
OBJETIVO GERAL
Destacar que Satanás não é um ser autoexistente, mas criado; e que sua ação não se sobrepõe a soberania de Deus.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
I – Explicar que o Livro de Jó não procura explicar a origem de Satanás, mas que seus atributos revelam quem ele é;
II – Afirmar que as obras do Diabo são visíveis e que o Livro de Jó revela sua natureza maligna;
III – Sublinhar o ocaso do Diabo, isto é, seus intentos sobre Jó não foram alcançados;
PONTO CENTRAL
O Diabo é um ser espiritual, mas não é autoexistente.
JÓ E O ENIGMA DO MAL
José Gonçalves
“[...] veio também Satanás entre eles” (1.6). Satanás aparece no livro de Jó como uma realidade cósmica e a quem o mal que sobrevém ao patriarca está associado. Satanás é a tradução do termo hebraico sãtãn, com o sentido de adversário e oponente.i Alguns teólogos argumentam que esse Satã citado no livro de Jó não seria o mesmo encontrado na literatura veterotestamentária posterior (1 Cr 21.1) e nem tampouco o Satã a quem se refere o Novo Testamento (Mt 4.10). Dessa forma, R. A. F. Mackenzie (2007, p. 929) destaca que esse Satã “ainda não se trata do ‘diabo’ da posterior teologia judaica e cristã”. Por sua vez, Terrien (1994, p. 65) explica que “o emprego do artigo definido mostra que o termo hassatan não era considerado nome próprio e que não deveria ser traduzido por Satã”. Ainda de acordo com Terrien, foi somente em um período posterior que esse termo tornou-se nome próprio e foi traduzido por Satã, ho diábolos.ii Além das questões léxicas, que, segundo defendem esses autores, impediriam vincular o Satã da narrativa de Jó com o Satã descrito em outras partes do Antigo Testamento e também do Novo Testamento, estaria também a questão de natureza teológica. Dessa forma, segundo eles, o redator de Jó não teria usado esse termo no seu aspecto teológico, mas funcional. Assim sendo, Schokel e Diaz (2002, p. 126) argumentam que não se deve confundir o Satã de Jó com “nossa imagem ou concepção do demônio, anjo caído que odeia a Deus e sua obra”.
Negar que Satanás possui personalidade simplesmente por questões de natureza puramente léxica não tem convencido a muitos outros intérpretes. Verifica-se, por exemplo, que o uso do artigo ou o seu não uso, assim como outras regras de natureza gramatical, admite exceções.iii Por exemplo, o termo “Deus”, usado em referência ao Deus de Israel, vem muitas vezes precedido de artigo no texto hebraico do Antigo Testamento. Afirmar que o Deus de Israel não é um ser pessoal simplesmente porque vem precedido de artigo é algo inconcebível. Seria temerário, portanto, para o intérprete generalizar o uso dessa regra concernente ao uso do artigo. Daniel Estes (2013, p. 474) põe em evidência esse fato em relação ao uso do artigo definido:
No Antigo Testamento, o artigo definido também é às vezes usado dessa maneira, como por exemplo, quando “o Deus” se refere a Deus ou “o baal” quando se refere à divindade cananeia Baal. Em vista disso, parece haver evidências significativas para ver o adversário em Jó como um antagonista de Javé e seu servo Jó.
O uso do artigo, portanto, não deve ser visto como uma limitação linguística à personalidade do Diabo, mas apenas como uma forma de descrever a função ou papel de Satanás como um adversário, sem, contudo, negar a sua pessoalidade. Vine, Unger & White Jr (2009, p. 282) destacam que, usado dessa forma, o termo tem o propósito de “enfatizar o papel de Satanás como ‘adversário’ que afligiu o patriarca com muitos males e sofrimentos”. Era dessa forma que a patrística cristã entendia (Oden, 2010). De uma forma geral, os Pais da Igreja, mesmo fazendo uso alegórico dessa narrativa, onde Jó simboliza o justo lutando contra as tentações do demônio, não faziam distinção alguma entre esse Satanás descrito em Jó daquele que aparece no Novo Testamento.iv
Por outro lado, as evidências internas do texto do livro de Jó mostram alguns atributos de Satanás que o expõem como um ser dotado de personalidade. Além do fato de ser espiritual, capaz de agir sobrenaturalmente (Jó 1.7), Satanás, por exemplo, também demonstra ser possuidor de inteligência e conhecimento (1.7; 9). Ele demonstra conhecer Jó e a sua forma de comportar-se (1.7) bem como se mostra capaz de argumentar com Deus (1.9). Essas mesmas características são demonstradas por Satanás quando tentou a Cristo. Ele sabia, por exemplo, quem era Jesus e foi capaz de argumentar com Ele (Mt 4.1-11). O Diabo do livro de Jó e o do Novo Testamento são, portanto, a mesma pessoa.
“[...] e que se desvia do mal” (1.8, ARA). A expressão “que se desvia do mal” aparece no testemunho que Deus dá sobre Jó. Fica bastante claro que o livro de Jó não tem o propósito de explicar a origem de Satanás nem tampouco como o mal veio a existir no Universo.v O livro de Jó parte do pressuposto de que o Diabo existe e de que o mal é uma realidade. No caso de Jó, fica subentendido que o mal é anterior a ele, visto que Jó procurava evitá-lo (1.8). Jó vive, portanto, em um mundo moral onde a existência de Satanás e do mal são uma realidade. Não há como negar que o mal é uma realidade e que está espalhado pelo Universo. Ignorá-lo não é uma tarefa fácil. Como explicar, por exemplo, o fato de uma criança indefesa e inocente sofrer com câncer? Como explicar os grandes desastres naturais com milhões de vidas ceifadas? E o que dizer das guerras que já mataram milhões de pessoas? Essas são perguntas que não podem ser explicadas de forma satisfatória se a questão do mal não for levada em conta.vi O livro de Jó mostra que, mesmo antes de o patriarca ser provado, o mal já existia no mundo (1.8).vii Todavia, com respeito ao sofrimento de Jó, o mal aparece associado a Satanás, mesmo que o patriarca não tivesse consciência disso (1.11-12).
Satanás aparece no texto de Jó como um ser que tem limites. Ele não faz o que quer ou pode fazer (1.12; 2.6). Isso significa dizer que, ao contrário de Deus, que é eterno e Todo-poderoso, Satanás é um ser espiritual criado. Todavia, dizer que o Diabo é um ser criado está muito longe de dizer que ele foi criado por Deus dessa forma ou que tenha criado o mal. Se Deus criou anjos bons, então de onde veio o Diabo? O Senhor criou seres perfeitos e bons, todavia dotados de livre-arbítrio. Assim como os humanos, Satanás, que antes fora um anjo bom, também foi dotado com capacidade de escolha. O livre-arbítrio não é bom ou mal em si, mas, dependendo da forma como é usado, pode ser transformado num bem ou num mal. Luis Henriques Jr (2019, pp. 44,45) observa que “o presente da liberdade que foi concedido veio com todas as consequências da existência. O surgimento do bem espiritual tem como consequência a possibilidade da existência do mal espiritual”. Com o livre-arbítrio, os homens podem escolher Deus, mas com ele também podem rejeitá-lo. Deus não queria que seres sem liberdade de escolha servissem-no. E a razão é simples: onde não há liberdade de escolha, o amor é forçado, e a responsabilidade moral não existe (Geisler, 2002). O Diabo tornou-se Diabo porque escolheu ser assim.
Tanto no caso do homem como no de Satanás, a existência do mal tem origem na capacidade de escolha, isto é, no livre-arbítrio.viii Dessa forma, Poewell (2009, p. 340) diz que “o mal entrou no mundo pela livre escolha de criaturas moralmente responsáveis”. Qualquer outra tentativa de explicar a origem do pecado ou do mal no Universo que exclua a livre escolha do homem e dos anjos transforma Deus em um monstro moral. Deus seria o autor do pecado e, consequentemente, de todo sofrimento humano.ix O livre-arbítrio transformou um anjo bom em Satanás e o homem santo em pecador. Ulrich Luke (2012, p. 313) destaca que “a origem do mal se encontra, portanto, na liberdade das criaturas a princípio boas”. Da mesma forma, Geisler (2002, p. 534) destaca que
Deus é bom, e criou criaturas boas com qualidade boa chamada livre-arbítrio. Infelizmente, elas usaram esse poder bom para fazer o mal ao universo ao rebelar-se contra o Criador. Então o mal surgiu do bem, não direta, mas indiretamente, pelo mal uso do poder bom chamado liberdade. A liberdade em si não é má. É bom ser livre. Mas com a liberdade vem a possibilidade do mal. Então Deus é responsável por tornar o mal possível, mas as criaturas livres são responsáveis por torná-lo real.x
Segundo Alvin Platinga (2012, p. 47):
Um mundo com criaturas que sejam significativamente livres (e que livremente executem mais ações boas do que más) é mais valioso, se não houver complicações de outros fatores, do que um mundo sem quaisquer criaturas livres. Ora, Deus pode criar criaturas livres, mas não pode causar ou determinar que façam apenas o que é correto. Afinal, se o fizer, então elas não são afinal significativamente livres; não fazem livremente o que é correto. Para criar criaturas com capacidade para o bem moral, portanto, Deus tem de criar criaturas com capacidade para o mal moral e, não pode dar a essas criaturas a liberdade de executar o mal e, ao mesmo tempo, impedi-las de executá-lo. E aconteceu, infelizmente, que algumas das criaturas livres que Deus criou erraram no exercício de sua liberdade; essa é a fonte do mal moral. O fato de algumas criaturas errarem, contudo, não depõe contra a onipotência de Deus nem contra a sua bondade; pois ele só poderia ter impedido a ocorrência do mal moral removendo a possibilidade do bem moral.xi
Geisler (2002, p. 534) corrobora esse fato: “Deus não é o responsável pelo exercício do livre-arbítrio para fazer o mal. Deus não realiza a ação livre por nós”. Ele, portanto, ao fazer criaturas livres, capazes de escolher, fê-las porque não deseja que ninguém o sirva ou o ame forçadamente. O amor forçado não é amor, mas estupro. Ainda de acordo com Geisler (2002, p. 539):
É claro que Deus poderia forçar a todos a fazer o bem, mas então não seriam livres. Liberdade forçada não é liberdade. Já que Deus é amor, ele não pode impor-se contra a vontade de ninguém. Amor forçado não é amor, é estupro. E Deus não é um estuprador divino. O amor deve agir persuasivamente, mas não coercitivamente.
i HARRIS, R. Laird; Archer Jr, Gleason L; Waltke, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
ii TERRIEN, Samuel. Jó – grande comentário bíblico, p. 65. São Paulo: Paulus, 1994.
iii Uma dessas exceções pode ser vista, por exemplo, no uso arcaizante do artigo na literatura tanto hebraica como rabínica (SCHOKEL; DIAZ. Job: comentário teológico y literário, p. 87. Madrid: Ediciones Cristandad. 2002).
iv Veja, por exemplo, as obras: Comentario Al Libro de Job, 1.6 (Iso’dad de Merw, c.850); Libros Morales, 2.40, 65-66 (Gregório Magno, 540–604); Comentario al Libro de Job, 1.11 (João Crisóstomo, 348–407); Explicación del Libro de Job, 1.13 (Juliano de Eclana, 386–455); Comentarios al Libro de Job, 2.6 ( Efrén de Nisibi, 306–373). (Oden, Thomas. La Biblia Comentada por los Padres de la Iglesia. Madrid: Ciudad Nueva, 2010).
v A meu ver, Richard Taylor está correto quando diz que a presença do mal no Universo está associada à queda de Satanás e à presença do mal na terra à queda do homem (TAYLOR, Richard. Diccionario Teológico Beacon, p.416. Lenexa, Kansas: Casa Nazarena de Publicaciones: 1984). De fato, não há indicações na Bíblia de que haja um mal anterior a Satanás. Pelo contrário! Nossa percepção da existência do mal começa com a existência de Lúcifer. Deve ser destacado que o termo Lúcifer, como referência a Satanás, provém da Vulgata, tradução da Bíblia feita para o latim por Jerônimo (347–420 d.C) (LEMAITRÊ; QUINSON; SOT. Dicionário Cultural da Bíblia, p. 186. São Paulo: Loyola, 1999). A patrística, desde cedo, entendia que a passagem bíblica de Ezequiel 28.12-16 era uma referência à queda de Satanás. Dessa forma, Tertuliano (155–220 d.C) diz: “se você revisar a profecia de Ezequiel, notará facilmente que aquele anjo que havia sido criado bom se corrompeu por sua própria vontade”; Orígenes (184–253 d.C) escreve: “portanto, estas afirmações de Ezequiel a respeito do príncipe de Tiro se referem, como temos demonstrado, a um poder adverso, e provam claramente que este poder era antes santo e bem-aventurado, mas desse estado de felicidade foi jogado na terra no momento em que se encontrou iniquidade nele”; e também Jerônimo (347–420 d.C) destacou que “aquele que foi nutrido no jardim das delícias como uma das doze pedras preciosas, foi ferido e caiu nos infernos desde o Monte do Senhor” (ODEN, Thomas. La Bíblia Comentada por los padres de la iglesia. Tomo 15, p.159-160. Madrid: Ciudad Nueva, 2015). Esse entendimento é confirmado pelas evidências internas do texto: 1. Os termos e expressões: “monte santo”, “pedras de fogo” (lit), não se harmonizam com o Éden terreno. 2. A referência a “querubim... ungido” (v. 17) não se aplica a Adão no Paraíso. 3. A referência feita por Paulo à “condenação do diabo” (1 Tm 3.6), como sendo o orgulho, só encontra paralelo no Antigo Testamento aqui (veja uma exposição completa em: HARRIS; ARCHER; WALTKE. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, pp. 1474,75. São Paulo: Vida Nova,1998). Há uma exposição completa sobre o assunto feita pelo dr. Carlos Augusto Vailatti em: Demônios: Origem, Natureza, Atividades e Destino (https://www.youtube.com/watch?v=P7bHeTXALeI 08/10/2019).
viOs teólogos costumam dividir o mal em moral e natural. Nesse aspecto, o mal moral está associado à queda de Adão (Rm 5.12; 6.23), e o mal natural é uma consequência desta (Gn 3.17-19). No caso de um bebê inocente que sofre de uma enfermidade terminal, temos um exemplo do mal moral, visto que todos os homens estavam no lombo de Adão, inclusive o bebê. Por outro lado, uma catástrofe natural seria uma demonstração do mal natural (GERSTNER, J. H. Enciclopédia Histórico-teológica da Igreja Cristã, vol II, pp.466,467. São Paulo: Vida Nova, 1992).
vii A palavra hebraica ha’, traduzida como “mal” (Jó 1.8), é a mesma usada em Gênesis 2.9,17; 3.5,22. (STRONG, James. Nueva Concordancia Exhaustiva de la Biblia. Nashville: Grupo Nelson, 1990).
viii Geisler mostra que esse era o pensamento cristão ao longo da História da Igreja: Justino Mártir (100–165 d.C); Irineu (125–202); Atenágoras (séc. II); Teófilo (130–190 d.C.); Taciano (120–173 d.C.); Bardesanes (154-222 d.C.); Clemente de Alexandria (150–215 d.C.); Tertuliano (155–225 d.C.); Novaciano (200–258 d.C.); Orígenes (185–254 d.C.); Metódio (260–311 d.C.); Cirilo de Jerusalém (315–387 d.C.) Gregório de Nissa (335–395 d.C.); Jerônimo (340–420 d.C.); João Crisóstomo (347–407 d.C.); Agostinho, antes de 412; Anselmo (1033–1109 d.C.); Tomás de Aquino (1225–1274 d.C.)
ixDeus não é o autor do mal, mas, como onisciente que é, tem conhecimento da sua existência. Todavia, conhecer não significa causar. Deus tem conhecimento sobre o mal, mas não o causa. De acordo com Ulrich Luke, Deus “conhece o mal com antecedência, mas sem que essa presciência possa ser considerada uma causa ou aprovação do mal” (LUKE, Ulrich. Novo Léxico da Teologia Dogmática Católica, p. 313. Petrópolis: Vozes, 2015).
x Em outra obra da sua autoria, Geisler explica que tanto no caso de Lúcifer como do homem, as suas ações são autocausadas. Dessa forma, Deus, que é imaculadamente perfeito, não poderia ser a causa do pecado de Lúcifer e, também, do homem. Sendo Lúcifer o primeiro ser a pecar, a sua ação, necessariamente, foi autocausada. (GEISLER, Norman. Teologia Sistemática: pecado, salvação, igreja e últimas coisas, vol. 2, p. 76. Rio de Janeiro: CPAD, 2010).
xi Ainda de acordo com Platinga, o livre-arbítrio pressupõe: 1. Um Deus que é onisciente, Todo-poderoso e todo bondade, criou o ser humano como sujeito moral, o que implica ter a capacidade de escolher entre o bem e o mal. 2. Como Deus é onisciente, sabia que o mal apareceria; como é Todo-poderoso, podia criar o mundo com diversas possibilidades; e como é todo bondade e a sua moral é perfeita, só pode ter tido boas razões para criar o mundo tal como o fez. 3. Como consequência, Deus pode ter criado a possibilidade de haver o mal; contudo, foi o ser humano quem, ao escolher fazer o mal, o tornou realidade. Entretanto, Deus não foi pego de surpresa em razão de o mal fazer-se realidade. Portanto, em última instância, o mal existe no mundo porque Deus tem um bom motivo para permitir a sua existência (POWELL, Doug. Guia Holman de Apologética Cristiana: pruebas y fundamentos de la fe cristiana, p. 339. Nashville, Tenessee: BH Español, 2009).